O sofrimento e a teologia reformada Presb Jose Mário

                                            O SOFRIMENTO E A TEOLOGIA REFORMADA
               Embora o decadente evangelicalismo atual insista em apregoar um evangelho de facilidades, conquistas materiais crescentes e, sobretudo, uma vida completamente isenta do mais leve vestígio de sofrimento, a realidade objetiva do que nos é ensinado pela palavra de Deus, e a história do cristianismo no-lo tem mostrado de modo inquestionável, é que o sofrimento faz parte da caminhada de todo aquele que é alcançado pela graça de Deus e, ato contínuo, passa a ser um discípulo de Jesus Cristo.
               Assim, o slogan “pare de sofrer” é absolutamente inconsistente, fantasioso, e inteiramente desprovido de chancela bíblica, não devendo, portanto, ser abraçado por quem anela viver de conformidade com as Escrituras Sagradas. Imaginar o exercício da vida cristã como um permanente jardim de delícias é uma demonstração clara de triunfalismo ingênuo, próprio de quem não compreendeu plenamente o indisfarçável realismo de que se acha impregnada a revelação de Deus consignada em sua Palavra.
               A razão primacial por que o sofrimento é um companheiro inseparável do ser humano em sua travessia terrena está umbilicalmente ligada à histórica e traumática experiência da queda de Adão e Eva, nossos primeiros pais, cujos nefastos efeitos foram, de pronto, transmitidos a toda a raça humana.
               Nesse particular, a inspirada narrativa de Gênesis é extremamente elucidativa. Antes do ato de desobediência que os nossos primeiros pais perpetraram contra Deus, a vida na terra era plenificada por um inabalável relacionamento entre Deus e o homem, que desfrutavam de uma irrasurada e permanente comunhão. A figura adotada pelo escritor do Gênesis para assinalar tão sublime conúbio entre criador e criatura não poderia ser mais eloqüente: na viração do dia, Deus procurava o homem para impregná-lo da beleza e da doçura de um maravilhoso encontro.
               Depois da queda, entretanto, a realidade mudou drasticamente, e para pior. A presença de Deus passou a ser sinônimo de algo apavorante, tanto que dela o homem passou a se esconder. De território fértil e pródigo em fornecer ao homem todas as suas necessidades alimentares, a terra se transformou em geografia agônica, de cujo ventre brotariam cardos e abrolhos, dentre outros frutos que trariam hostilidade ao homem. Os relacionamentos interpessoais também foram imediatamente impactados pelo veneno da indiferença, do egoísmo e do desamor mais explícito, que o diga o covarde assassinato de Abel, levado a cabo por seu irmão Caim; que o diga a postura cínica de Lameque, que, impiamente, fez da benevolência de Deus não um instrumento para o necessário refreamento do mal, mas sim um estímulo e um salvo-conduto para prosseguir na senda da iniqüidade.
               Aqui reside, na ontológica realidade do pecado, sem explicações mais exaustivas e capazes de solucionar todos os problemas que envolvem tão momentosa questão, os fundamentos primaciais que respondem pela presença do sofrimento no mundo. Ao romper, deliberada e conscientemente, o seu relacionamento com o criador, sua fonte primeva de felicidade plena, o homem trouxe sobre si o flagelo do pecado, e de todos os males inerentes a ele.
               Assim, neste mundo imenso de mais de seis bilhões de seres humanos, não há quem não vivencie, em maior ou menor intensidade, a universal realidade do sofrimento, que através de múltiplas modalidades manifestativas mostra a sua dolorosa face: enfermidades incuráveis, depressões, colapsos financeiros, fome, violência desenfreada, dissoluções familiares, cataclismas, dentre tantas outras que afligem o homem e esculpem em seu corpo e sua alma as formas vivas e angustiantes da dor e do sofrimento.
               À luz da Escritura Sagrada, e tomando como ponto de partida a perspectiva adotada pela Teologia Reformada, penso que várias são as razões, pelas quais Deus em sua soberana providência, faz recair sobre o homem o pesado cutelo do sofrimento. Em primeiro lugar, para nos desconectarmos da mania de autossuficiência que gostamos de cultivar, ao vivermos como se as rédeas do nosso destino estivessem bem seguras em nossas mãos. Como conseqüência dessa ilusória presunção de que temos a nossa vida debaixo do nosso controle, nós começamos a fazer os nossos planos, entabular nossos projetos, construir nossos castelos imaginários, como se realmente tudo dependesse de nós. O sofrimento, então, muitas vezes súbito, estaciona em nossa porta, a fim de lembrar-nos da nossa pequenez, insuficiência e impressionante fragilidade.
               É aí que reconhecemos que somente Deus é todo-poderoso, e que sem ele não somos nada, não temos nada, não podemos nada. É exatamente nesse momento que aprendemos com a força viva da experiência que, verdadeiramente, “o coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor”. (Provérbios 16.1).
               Em segundo lugar, o sofrimento muitas vezes nos é imposto por Deus, a fim de que sejamos levados a meditar com mais seriedade sobre a realidade do pecado. Frequentemente, o nosso cristianismo desconecta-se tanto da Palavra de Deus que findamos tendo uma imagem muito suavizada acerca do nosso pecado, como se ele não passasse de uma inofensiva, e até engraçada peraltice de criança.
               O pecado humano, entretanto, é algo tão grave que fez com que o Filho de Deus, para nos salvar e nos reconciliar com o Senhor, tivesse de experimentar o maior dos sofrimentos: a morte na cruz do calvário. Portanto, ao sermos atingidos por alguma forma de sofrimento, em vez de invocarmos a nossa suposta bondade, e levantarmos contra Deus os nossos queixumes e desapontamentos, ainda que eles façam parte da nossa caída humanidade, lembremo-nos de que somos pecadores; e de que é por causa do nosso pecado que o mundo se tem transformado, em muitos aspectos, numa espécie de vale de lágrimas.
               Em terceiro lugar, o sofrimento deve produzir em nós um maior senso de dependência do Senhor, de modo a fazer com que nos demos conta de que é somente dele que nos vêm a força e a graça de que necessitamos em nossa caminhada espiritual cotidiana. Na hora do sofrimento, detectamos a nossa fraqueza, e nos lançamos aos pés do Senhor, buscando, como nos diz o anônimo escritor da Epístola aos Hebreus, “socorro em ocasião oportuna”. (Hebreus 4.16b).
               Em quarto lugar, o sofrimento deve levar-nos a pensar com real esperança nas gloriosas consolações que aguardam os salvos na eternidade. As Escrituras Sagradas nos prometem que na consumação de todas as coisas, Deus haverá de enxugar dos nossos olhos toda a lágrima. Na extraordinária epístola que escreveu aos romanos, o apóstolo Paulo asseverou: “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada a nós” (Romanos 8.18).
               Em quinto lugar, o sofrimento é um instrumento precioso de que Deus se utiliza, a fim de que por meio dele sejamos levados a aferir a genuinidade ou não da fé que dizemos possuir em nossos corações. Quando tudo em nossa vida é sinônimo de bonança, fica bem mais fácil nós nos mantermos firmes em nossa confissão. Quando, ao contrário, as lutas sobrevêm, as aflições se multiplicam, a dor nos alcança, e o sofrimento passa a ser um companheiro inseparável das nossas vidas, é que efetivamente podemos avaliar a consistência da nossa fé.
               Dentre as várias passagens bíblicas que pontuam o sofrimento como um importante teste a ser aplicado em quem se autoproclama um seguidor de Jesus Cristo, avulta a da Parábola do Semeador. Nela, Jesus Cristo fala sobre um grupo de pessoas que recebe a sua mensagem com alegria e aparente fervor, mas “em lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza”. (Mateus 13.21b).
               O ponto aqui é claro: na hora em que o sofrimento entrou por uma porta, a perseverança saiu pela janela. Na Epístola aos Romanos, num admirável texto, o apóstolo afirma que “a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado”. (Romanos 5.3b-5).
               Recentemente, os noticiários internacionais trouxeram a público o caso de um pastor evangélico que foi condenado à morte num país de fé islâmica pelo “crime” de professar a sua fé na pessoa e na obra de Jesus Cristo. Enquanto aguarda o dia e a hora da sua execução, o pastor foi assediado para negar a sua fé em Jesus Cristo, em troca da preservação da sua vida. Numa demonstração de indiscutível firmeza, o aludido pastor não aceitou tão infame proposta, “preferindo, tal como Moisés, ser maltratado junto com o povo de Deus a usufruir prazeres transitórios do pecado” (Hebreus 11.25).
               Em sexto lugar, o sofrimento conduz o crente a palmilhar a estrada áspera da humildade, ao mesmo tempo em que refreia no seu coração as terríveis propensões para o cultivo da soberba. Um emblemático exemplo acerca desse assunto nos é dado pelo espinho na carne que Deus fez brotar no ministério do apóstolo Paulo, a fim de impedir que ele, por causa das excelentes revelações recebidas de Deus, não se ensoberbecesse a ponto de querer para si uma glória somente cabível ao Deus todo-poderoso. Não nos enganemos, o ego humano adora afagos e louvações desmedidas, o que, na prática, é um ardiloso convite para o culto de si mesmo, o abominável pecado da idolatria. Assim, para nos livrar de nós mesmos, o nosso gracioso e sábio Deus planta, no jardim inflado do nosso coração, o pedagógico espinho na carne, a fim de vivermos de maneira humilde diante do Senhor.
               Em sétimo lugar, o sofrimento pode se transformar num poderoso meio de que Deus se utiliza para levar os seus filhos ao arrependimento, à confissão, e ao abandono dos pecados. Ao meditar neste ponto, vem-me à mente a história do rei Manassés, um dos mais perversos de que se tem notícia no Antigo Testamento. A Escritura diz que Manassés sentia um mórbido prazer em pecar contra Deus, violar os seus mandamentos, perseverar em fazer o que era mau perante os olhos do Senhor. Ao atingir o ápice da sua iniqüidade, Deus, por intermédio do rei da Assíria, trouxe juízo sobre Manassés. Transformado em prisioneiro de guerra do exército assírio, humilhado publicamente, despojado de sua realeza, e espezinhado em sua dignidade pessoal, Manassés, “angustiado, suplicou deveras ao Senhor, seu Deus, e muito se humilhou perante o Deus de seus pais; fez-lhe oração, e Deus se tornou favorável para com ele, atendeu-lhe a súplica e o fez voltar para Jerusalém, ao seu reino; então, reconheceu Manassés que o Senhor era Deus”. (2 Crônicas 33.12,13). Vê-se aqui, claramente, que o sofrimento feriu de tal modo o coração e a consciência de Manassés que ele foi conduzido a um real quebrantamento diante do Senhor, e a uma posterior restauração do seu relacionamento com Deus.
               Em oitavo lugar, o sofrimento aviva no crente a realidade da solidariedade orgânica existente na igreja, e o faz refletir sobre a dimensão comunitária que a reveste. Noutras palavras: o meu sofrimento não é o único; eu não sofro solitariamente; outros já sofreram antes de mim; outros tantos também estão sofrendo agora; e alguns até com mais intensidade do que eu. Essa realidade faz com que eu não me ensimesme, e seja levado a presumir que a minha dor é maior do que a dor de todas as outras pessoas; e que o meu sofrimento é o único que existe no mundo.
               Pontuando essa matéria doutrinária, assim se expressou o apóstolo Pedro: “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando”. (1 Pe 4.12,13). Noutro momento, ao discorrer sobre as ferozes investidas do inimigo das nossas almas contra nós, Pedro exorta-nos dizendo: “resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais aos vossos estão-se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo”. (1 Pedro 5.9). O sofrimento, aqui, era decorrente da fidelidade dos crentes à pessoa de Jesus Cristo, e aos elevados valores do evangelho radicado no Filho de Deus.
               O Deus do cristianismo, único, vivo e verdadeiro, não é um ser todo-poderoso que vive entronizado em alguma galáxia distante, e se comporta de maneira completamente indiferente ao sofrimento das suas criaturas. Um Deus assim não se harmoniza com o que nos é revelado nas Escrituras Sagradas. O Deus da Bíblia, três vezes santo, absolutamente onipotente, e adornado pelos mais variados e simétricos atributos morais, amou as suas criaturas de modo tão superlativo que, na pessoa do seu Filho Jesus Cristo, deixou o esplendor da sua glória, encarnou-se, fez-se homem, habitou entre nós, em tudo foi tentado, nunca pecou, viveu vida santa, sofreu os incomparáveis sofrimentos de uma ultrajante morte de cruz e, por fim, ressuscitou dentre os mortos, garantindo, desse modo, a eterna salvação do seu povo, assegurando, inabalavelmente, que chegará o dia em que de todo o universo será banido o mais leve vestígio do mal, da dor e do sofrimento.
               Como bem asseverou o Dr. Alister McGrath no seu excelente livro Apologética cristã no século XXI: ciência e arte com integridade, “Discutir o sofrimento sem fazer referência ao sofrimento de Cristo é um absurdo teológico e espiritual. Deus sofreu em Cristo. Ele sabe perfeitamente o que significa experimentar a dor. Ele percorreu a vereda do sofrimento, do abandono, da dor e da morte, a vereda do calvário. Deus não é um suposto herói de pés de barro, que exige o sofrimento alheio enquanto ele mesmo permanece distante do mundo dos que sofrem. Ele já passou pela sombra do sofrimento. O Deus no qual os cristãos acreditam e esperam é um Deus que já experimentou o sofrimento e, por isso, é capaz de transfigurar o sofrimento do seu povo”.
               Assim, amados irmãos, todas as vezes em que uma enfermidade mortal ameaçar minar o nosso corpo ou o de alguém a quem amamos; todas as vezes em que a instabilidade financeira tornar incerto o pão nosso de cada dia; todas as vezes em que a depressão quiser fazer da nossa alma um palco privilegiado para a representação das suas agonias existenciais mais dolorosas; todas as vezes em que as perdas afetivas trouxerem pesadas sombras às paisagens do nosso espírito; todas as vezes em que os dardos inflamados do maligno nos atingirem a ponto de a nossa fé em Deus se fragilizar; todas as vezes em que a nossa confessionalidade cristã tornar-nos alvos de odientas perseguições; todas as vezes, enfim, que as angústias da vida nos encurralarem e, conforme disse o salmista Davi, “nosso leito for alagado por nossas lágrimas, e os nossos olhos ficarem amortecidos de tanta mágoa neles depositada”  (Salmo 6.6b,7b), lembremo-nos de que “não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna”. (Hebreus 4.15,16). SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.
                                                                                                                      JOSÉ MÁRIO DA SILVA
                                                                                                                      PRESBÍTERO
                                                           

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