UMA
BÊNÇÃO CHAMADO DESESPERO
Num primeiro momento, e sem uma
análise contextual mais apurada, a palavra desespero não parece ter nenhuma
vinculação semântica com o conceito de bênção. Aliás, para muitos, juntar
bênção e desespero, mais do que um paradoxo, é um completo absurdo. O desespero
de um cidadão que tem apontada para a sua fronte a gélida arma de um impiedoso
assassino, certamente, não pode ser chamado de uma bênção. O desespero de uma
senhora que se vê transformada em presa fácil nas mãos de um maníaco imoral e
perverso, certamente, não pode ser chamado de uma bênção. O desespero de um
trabalhador que, de uma hora para outra, vê-se privado do seu emprego e, ato
contínuo, dos recursos e condições indispensáveis para prover a subsistência da
sua família, certamente, não pode ser chamado de uma bênção. O desespero de uma
família que, em dramáticos tempos de guerra, vê-se compelida a enviar os seus
filhos para os atemorizadores campos de batalha, sem ter a certeza de que eles
voltaram bem, certamente, não pode ser chamado de uma bênção.
Em suma, exemplos e mais
exemplos poderiam ser multiplicados aqui, sinalizadores de situações atípicas,
nas quais desespero e bênção trilham searas diametralmente opostas,
indiscutivelmente inconciliáveis. Contudo, há sim, e abundantemente encontrável
nas Escrituras Sagradas, Regra Única de Fé e Prática de todo cristão que a
recepciona como a infalível e inspirada Palavra de Deus, um tipo de desespero
que, conquanto tremendamente doloroso e desassossegador da consciência humana,
é uma bênção, porque leva o ser humano a refletir, com real seriedade, sobre a
sua situação espiritual diante do Senhor; e, por fim, arrependido, a voltar-se
para Deus, o único que, em sua graça, pode restaurá-lo, concedendo-lhe,
misericordiosamente, uma eterna e gloriosa salvação.
Um dos mais nefastos efeitos da
queda de Adão e Eva, logo transpostos para toda a raça humana, foi uma
corrupção espiritual e moral que se estendeu por todas as dimensões
constitutivas da personalidade do homem: mente/afeições/vontade. Dentre os
inúmeros e malévolos frutos decorrentes dessa congênita depravação, avulta,
como um dos mais perceptíveis, a soberba, a autoconfiança, autossuficiência,
que faz com que o homem cultive uma imagem muito positiva de si mesmo; a ver-se
como portador de méritos diante do Senhor, digno, portanto, de herdar o céu e a
presença de Deus, como consequência natural dos seus supostos merecimentos.
Noutras palavras: o homem passa
a cultivar, em seu coração, uma falsa esperança de salvação, proveniente,
convém reiterar, da soberba que o domina. É exatamente neste contexto que a
pregação fiel do evangelho salvífico de Jesus Cristo, ao confrontar o pecador e
desnudar-lhe as falsas esperanças, fere a sua consciência, inquieta o seu coração
e o conduz a um santo e abençoado desespero.
Examinemos mais de perto, a
natureza bíblica desse desespero. Em primeiro lugar, esse desespero nasce de
uma consciência viva de que o pecado, realmente, é uma transgressão séria da
lei de Deus, que o ofende e macula a sua ofuscante santidade. Creio que foi
esse o sentimento que tomou conta do profeta Isaías, quando ele teve uma
sobrenatural visão do Deus de Israel, assentado, todo-poderoso, num alto e
sublime trono, rodeado por querubins e serafins que, incansavelmente, não
cessavam de proclamar a santidade e o peso da glória do Senhor, estendido por
todos os quadrantes da terra. Em vez de sair pulando e dando aleluias, diante
da aterradora visão que teve da majestade do Senhor, Isaías, ao contrário, foi
conduzido a experimentar uma bênção chamada desespero, traduzida por palavras
ardentes, emanadas de um coração que se percebeu como realmente era: mau e
tremendamente pecador diante de Deus. Ao mirar-se no espelho da fulgurante
santidade de Deus, o profeta Isaías dá-se conta de que era um homem portador de
lábios impuros e, de igual modo, habitante e conterrâneo de um povo que também
era detentor de impuros lábios.
É dessa dramática percepção do
seu pecado individual e do pecado coletivo do povo a que pertencia que emerge o
quebrantamento do profeta e o clamor angustiado da sua alma, revestido da
nítida consciência de que ele vai perecer. Ao ser atingido pela bênção chamada
desespero, Isaías encontra-se com a brasa viva do altar do Senhor; Senhor que é
santidade absoluta e também graça que perdoa; e misericórdia que acolhe e põe
um miserável no coração. Em segundo lugar, o desespero abençoador produz
genuíno arrependimento no coração do pecador penitente.
Há uma passagem bíblica que é
sobremaneira elucidativa nesta matéria. Encontramo-la no Livro de Atos dos
Apóstolos, mais precisamente no trecho em que, cheio do Espírito Santo, o
apóstolo Pedro profere um incisivo sermão, mostrando, por meio de acurada
hermenêutica e uma bem aplicada analogia da fé, que a descida do Santo Espírito
de Deus, no dia de Pentecostes, era o cabal cumprimento de profecias
vetero-testamentárias e apontava, redentivo-escatologicamente, para a vitoriosa
obra expiatória realizada por Jesus Cristo na cruz do calvário, meio único e
eficaz de reconciliação do homem pecador com o Deus três vezes santo.
Concluída a poderosa pregação, “compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a
Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos? Respondeu-lhes Pedro:
arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para
remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (Atos
dos Apóstolos 2.37,38). Foi a contundente proclamação de Pedro o instrumento
usado por Deus para levar pecadores empedernidos ao desespero e ao arrependimento.
Sem a exigência do arrependimento, resulta mutilada a pregação do evangelho; e,
de igual modo, destoante do padrão apostólico, reformado e puritano de
proclamação da salvadora mensagem da cruz.
Em terceiro lugar, o desespero
abençoador faz com que o pecador, ao ver-se face a face com a santa lei de
Deus, para cujo cumprimento perfeito ele acha-se completamente inabilitado,
desista de continuar firmando-se nas andrajosas muletas das suas pecaminosas
obras; na sua religiosidade; no seu moralismo; ou em qualquer outra realidade
presumivelmente capaz de justificá-lo diante do Senhor. A parábola do fariseu e
do publicano, registrada nas páginas santas do evangelho, revela, solenemente,
essa verdade. Enquanto o fariseu, engordado pelo fermento da soberba, gabava-se
de grandes feitos diante de Deus, “o
publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu,
mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lucas
18.13). No limite, o publicano, levado a desespero pelos pecados que o tornavam
inimigo de Deus, percebeu que somente na fonte caudalosa da graça divina, ele
poderia encontrar a justiça inexistente em si mesmo e nas suas insuficientes
obras.
No livro Os batistas e a doutrina da eleição, na parte especificamente
dedicada à evangelização, Robert Selph afirma que “Nosso principal objetivo na evangelização do coração é duplo: Fazer a
lei de um Deus soberano e justo pesar sobre o coração do pecador, ao ponto de
desespero e direcionar o pecador para que corra para Cristo, em total abandono
do pecado e do próprio eu, rogando-lhe por misericórdia e uma nova vida. A
palavra chave que devemos frisar, quanto a esse objetivo duplo, é ‘desespero’.
É preciso que os pecadores sejam levados ao desespero, pelo Espírito Santo. O desespero
faz parte inerente da própria natureza do vir a Cristo”. Na mesma linha de
raciocínio, asseverou o Dr. Martyn Lloyd-Jones que “Fica perfeitamente claro, nas páginas do Novo Testamento, que ninguém
pode ser salvo enquanto, mais cedo ou mais tarde, não sentir o desespero de si
mesmo”.
Como se pode perceber, o
desespero abençoador, que leva o pecador a tirar os olhos de si e colocá-los,
irreservadamente, na pessoa e obra de Jesus Cristo, está diretamente
relacionado a uma proclamação do evangelho feita de forma fiel às Escrituras
Sagradas; proclamação que não hesita em “anunciar
todo o conselho de Deus” (Atos dos Apóstolos 20.27b). O notável pregador
inglês Charles Spurgeon, num dos seus sempre inspirativos e bíblicos escritos,
sentenciou: “Deus a ninguém reveste com
o manto da sua justiça, sem antes tê-lo aguilhoado com os rigores da sua lei”.
A realidade, entretanto, é que,
na maioria dos púlpitos do evangelicalismo brasileiro moderno, no lugar da
mensagem simples e bíblica da cruz de Jesus Cristo, sua morte expiatória e
ressurreição justificadora, o que tem tristemente prevalecido é um estranho
sincretismo que consorcia autoajuda, prosperidade material, curandeirismo
sensacionalista, existencialismo psicologizante, entretenimento superficial,
palestras motivacionais, dentre outros componentes conteudísticos inteiramente
contrários ao nosso inegociável tesouro de fé, que “de uma vez por todas foi entregue aos santos, e pela qual somos
exortados a batalhar com toda a diligência”, conforme a doutrinação emanada
do sacro escritor Judas, em sua diminuta e instrutiva epístola. Que Deus tenha
misericórdia do nosso país e, ato contínuo, levante pregadores que, firmados no
santo livro do Senhor, trovejem sermões que confrontem o pecado, levem os
pecadores, num primeiro momento, ao desespero por seus pecados; e, depois, à
real e gloriosa esperança radicada na pessoa e redentiva obra de Jesus Cristo
na cruz do calvário. SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.
JOSÉ
MÁRIO DA SILVA
PRESBÍTERO
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