VIDA QUE NASCE DA MORTE
Comecemos a nossa meditação de hoje com um pressuposto: a Escritura
Sagrada não exibe contradições, mas paradoxos. A distinção semântica entre uma
realidade e outra é flagrantemente ostensiva. Numa contradição, em qualquer que
seja o campo em que ela se manifesta, um elemento conceitual finda invalidando
o outro, com o qual estabelece uma dada relação de sentido.
A linguagem da contradição é
muito referencializada, por exemplo, no território de um depoimento que se
presta em juízo, diante de uma autoridade constituída. Quando o que se afirma
num determinado momento conflita, abertamente, com o que se asseverou noutro,
então o relato resulta carente de integridade, revelando-se, portanto, falso. O
paradoxo, ao contrário, conquanto lide com realidades aparentemente antagônicas
e de difícil harmonização por parte da finita e pecaminosa mente humana, põe,
lado a lado, conceitos que são igualmente verdadeiros.
Afirmamos que as Escrituras
Sagradas estão impregnadas de paradoxos. E, de fato, elas estão. Dentre os
muitos que enxameiam as inspiradas páginas do santo livro de Deus, invoquemos,
à guisa de exemplificação, um que nos parece ser um dos mais impressionantes e
eloquentes, exatamente, o que sinaliza para a soberania de Deus e suas
indeslindáveis vinculações com a responsabilidade humana. A Palavra de Deus, de
Gênesis a Apocalipse, ensina, sobrantemente, que Deus é soberano; é o
controlador supremo de toda a história delineada no universo que ele mesmo
criou para o seu louvor e glória; que tudo quanto acontece e haverá de
acontecer não é fruto do acaso; antes, obedece a um plano que, santa e
sabiamente, foi decretado pelo Senhor, nos invisíveis bastidores da eternidade.
Esse é um lado da verdade,
cristalino e irrefutável. De igual maneira, a Escritura Sagrada ensina que o
homem é um ser responsável, não age como uma máquina programada mecanicamente;
antes, é portador de inalienável moralidade. Como se harmonizam essas duas
instâncias conceituais teológicas, é tarefa complexa e inalcançável para o ser
humano, mas, perfeitamente, solucionada na mente infinita do Criador. Em toda a
parte da Revelação, encontramos o Senhor, por meio dos seus porta-vozes,
exortando os homens ao arrependimento e ao abandono dos pecados. Contudo, na
Escritura Sagrada também aprendemos que é Deus, pela ação benévola do seu Santo
Espírito, que concede ao homem a graça do arrependimento, dado que, “morto em delitos e pecados” (Efésios
2.1b), sem o monergístico agir divino, o homem jamais esboçará qualquer gesto
de inclinação em direção a Deus.
Dentre esse repertório de
paradoxalidade de que se impregna o texto bíblico, deparamo-nos com o ponto de
que o cristianismo, encarado em seu cerne doutrinário, é, ao mesmo tempo, vida
e morte, dependendo do ângulo por meio do qual ele é encarado. Num sentido,
digamos, positivo, o cristianismo é vida; vida plena; vida eterna; vida
genuinamente feliz; pelo simples fato de ser enraizada naquele que, não somente
possui a vida, mas é a própria vida.
O evangelista João, na parte
prolegumenar do seu livro, ao discorrer sobre Jesus Cristo, afirma,
solenemente, que “a vida estava nele e a
vida era a luz dos homens” (João 1.4). Noutra porção do seu inspirado
relato, ouvimos dos lábios do Filho de Deus a confortadora assertiva: “O ladrão vem somente para roubar, matar e
destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham com abundância” (João
10.10). Todos nós estávamos mortos nos nossos delitos e pecados, conforme
doutrina o apóstolo Paulo na epístola endereçada aos efésios. “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por
causa do grande amor com que nos amou” (Efésios 2.4), nos concedeu vida, ao
aplicar em nossos corações, pela instrumentalidade da pregação do evangelho e
do agir do Espírito Santo em nós, as virtudes gloriosas do sacrifício redentivo
que Jesus Cristo realizou na cruz do calvário em nosso favor.
Entretanto, numa acepção
negativa, cristianismo também é morte, na medida em que, biblicamente falando,
viver para Deus pressupõe, inevitavelmente, o morrer para nós mesmos, para o
nosso congênito egoísmo e senso de independência de Deus, coração intocável do
pecado, visto como uma condição e um estado do homem diante do Criador. Morrer
para os velhos apetites da carne, que, mesmo crucificada com Cristo Jesus,
ainda insiste em manifestar as suas indesejáveis obras. Morrer para um estilo
de vida autocentrado e idolátrico, que, em vez de ter na justa promoção da
glória de Deus o seu indesviável alvo, consagra-se à satisfação de um ego
orgulhoso e amante de si mesmo.
Na exuberante epístola que
endereçou aos cristãos da cidade de Colossos, o apóstolo Paulo enfatiza que a
união mística do crente com Jesus Cristo produz, naturalmente, morte para o
pecado e vida para Deus. Por esse viés, a santificação, por meio da qual Deus
nos salva e continua a nos salvar do poder escravizador do pecado residente em
nós, numa dimensão bem prática, constitui-se num morrer diário para o pecado e
num viver contínuo para Deus e para os santos valores do seu reino.
Certa feita, numa atitude
diametralmente oposta à que hegemoniza a filosofia pragmático-marqueteira do
nosso tempo, sempre ávida por satisfazer, incondicionalmente, os desejos e
caprichos de consumidores cada vez mais exigentes, principalmente os que
abarrotam o inflacionado mercado religioso, Jesus Cristo “convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida,
perdê-lá-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-lá-á”
(Marcos 8.34,35).
Aqui está, ratificado nas
palavras do Filho de Deus, um dos grandes paradoxos da fé cristã, alicerçado
numa perda, que é ganho; e numa vida, que nasce da morte. A grande e simples
questão que se impõe é a seguinte: o que o mundo julga ser um ganho, Deus
afirma que é perda; e o que o mundo considera perda, Deus assegura que é um
ganho eterno. Cristianismo é vida que
nasce da morte. Eis, aqui, um paradoxo que pode fazer toda a diferença, não
somente para o que aqui e o agora, mas para toda a eternidade. Morramos para
nós mesmos e vivamos para Deus. SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.
JOSÉ
MÁRIO DA SILVA
PRESBÍTERO
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