Semana retrasada dissertamos,
nesta coluna dominical, sobre os atributos incomunicáveis de Deus, que são
prerrogativas indisputáveis do Senhor, e não podem ser compartilhadas, em
nenhuma hipótese, com os seres humanos. Como emblemáticos exemplos de atributos
radicados no cerne essencial e intransferível da divindade, apontamos a
onipotência, a onisciência e a onipresença. Deus tudo pode, tudo sabe e em
todos os lugares manifesta a sua gloriosa presença.
Já os atributos comunicáveis de
Deus são aqueles que ele compartilha com as suas criaturas, conferindo a elas
as possibilidades efetivas para encarná-las e manifestá-las em seu viver
cotidiano. É claro que, na realidade concreta e experiencial dos homens, tais
atributos comunicáveis nunca se operacionalizam de modo pleno e isento de
imperfeição, dado que os homens se encontram, ontologicamente, contaminados
pela corrupção do pecado. Em suma: os atributos comunicáveis de Deus
incorporam-se à condição humana e materializam-se de forma limitada.
No viver prático das pessoas
regeneradas, renascidas pelo poder do Espírito Santo de Deus e do transformador
evangelho da graça do Pai e do Filho, tais atributos comunicáveis de Deus devem
ser reais, visíveis e progressivos, uma espécie de antecipação gloriosa daquilo
que nós seremos e faremos quando, completamente glorificados e sem o mais leve
vestígio do pecado, estivermos, definitivamente, na presença do Senhor, com
corpos plenamente renovados e almas totalmente purificadas.
A Escritura Sagrada diz-nos que
Deus é amor. Essa é a imutável essência do seu ser. Amor que, antes mesmo de
ser explicitado nos grandes atos da criação do mundo e do homem, e, depois, na
redenção dos seus eleitos, já se constituía na natureza intrínseca do
relacionamento que, na eternidade, Pai/Filho/Espírito Santo vivenciavam entre
si. O Deus revelado nas Escrituras Sagradas é, sobretudo, um Deus relacional.
Na belíssima Oração Sacerdotal
que realizou, Jesus Cristo fala ao Pai acerca da glória que lhe foi conferida,
porque me “amaste antes da fundação do
mundo” (João 17.24). Pois é exatamente esse amor que norteia o maravilhoso
relacionamento exponenciado pelas pessoas da Trindade que Deus, por meio da
obra regeneradora do seu Santo Espírito, comunica ao seu povo para que ele o
pratique de forma genuína, facilmente perceptível, de modo a fazer com que as
pessoas com as quais nós convivemos percebam, claramente, que, em nós, o
evangelho é uma verdade comprovada por nossos exemplos e gestos; e não um mero
discurso, peça retórica bonita para ser ouvida, mas realidade feia demais para
ser acatada, dado que, flagrantemente, negada pelas nossas atitudes.
Num dos últimos sermões que
pregou aos seus discípulos, Jesus Cristo, de modo luminosamente incontroverso
sentenciou: “Novo mandamento vos dou:
que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos ameis, que também vos ameis uns
aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor
uns aos outros”. (João 13.34,35).
Ao criar o homem à sua imagem e
semelhança, Deus o fez com propósitos distintos, mas rigorosamente
complementares: que ele amasse a Deus com todas as dimensões do seu ser; o
glorificasse em todos os seus atos; e, e igual modo, amasse o seu próximo,
irreservada e altruisticamente, transformando o viver na terra numa experiência
comunitária marcada pelos indeléveis signos da fraternidade, da solidariedade e
do amor recíproco.
O flagelo abominável do pecado,
contudo, conforme conta-nos o santo livro, entrou na história humana, envenenou
os corações e infeccionou as almas com o vírus do desamor, do ódio e da
indiferença. No lugar da cooperação amistosa, instalou-se a competição
predatória; no lugar do cuidado de uns para com os ostros, entronizou-se o
egoísmo e a lógica perversa do cada um por si. Que o diga Caim, que, ao ser perguntado
por Deus acerca do seu irmão Abel, insolentemente respondeu: “Não sei; acaso, sou o tutor de meu irmão?”.
(Gênesis 4.9b).
A Escritura Sagrada nos afirma
que “o amor de Deus é derramado em nosso
coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado”. (Romanos 5.5b). Amar,
portanto, irmãos queridos, não é uma opção a ser acolhida ou rejeitada por nós,
de conformidade com a nossa vontade, mas sim um mandamento do Senhor, para cujo
cumprimento recebemos de Deus a capacitação do seu Espírito Santo.
Assim como o amor, a
misericórdia também é um atributo que Deus nos comunica. Misericórdia é um
atributo moral que faz com que Deus tenha uma disposição permanentemente
benévola para colocar em seu coração um ser miserável, completamente despojado
de qualquer merecimento. Por meio da misericórdia, Deus estende a sua mão
bondosa a quem nada faz para desse ato gracioso tornar-se merecedor. Mesmo
quando arrepende-se dos seus pecados e clama a Deus pela sua misericórdia,
ainda assim, ele não se torna portador de mérito algum, dado que o
arrependimento somente pode brotar no coração do pecador pela ação do Espírito
Santo.
Um dos exemplos mais
impressionantes da misericórdia de Deus, nós encontramos na dramática história
do rei Manassés. Depois de fazer da iniquidade o seu mais acalentado projeto de
vida, Manassés tornou-se prisioneiro de um exército adversário de Israel;
objeto do escárnio público e símbolo de um líder derrotado por sua própria
maldade. Mas, arrependido, ele roga ao Senhor, que se apieda dele, concede-lhe
perdão; enfim, é misericordioso para com ele.
O crente em Jesus Cristo, alvo
da misericórdia de Deus, deve também ser misericordioso com as pessoas que o
cercam e com as quais convive, notadamente com as que mais sofrem,
principalmente, o sofrimento maior, vivenciado pelos que se encontram longe de
Deus e do evangelho da salvação, caminhando, céleres, para uma eternidade de
eterno sofrimento. Um coração duro, frio e insensível à dor alheia, desprovido
de misericórdia, não combina em nada com quem se diz renovado pelo poder do
evangelho.
Outro atributo comunicável de
Deus é o que aponta para a sua gloriosa santidade. A Escritura Sagrada nos
apresenta Deus como um ser santo, santo e santo; aliás, esse é o único atributo
de Deus que aparece repetido três vezes. Alguns intérpretes sugerem que essa
reiteração, para além da intensidade argumentativa de que se reveste, sinaliza
para as três pessoas da Trindade. Seja como for, o ponto evidenciado radica na
absoluta perfeição moral que envolve todo o ser de Deus.
O Livro de Levítico, por
exemplo, está, o tempo todo, lembrando ao povo de Israel, que Deus é santo; e
que ninguém pode se aproximar dele desassistido do ministério de um mediador
eficaz e suficiente chamado Jesus Cristo, tipologicamente, representado por
todo o sistema sacrificial instituído pelo próprio Deus para assegurar ao seu
povo livre acesso à sua presença.
Deus é santo e, de igual modo,
exige santidade dos que se dizem seus servos. Na Oração do Pai Nosso, Jesus nos
ensina a santificar o nome do Senhor em nosso viver. O apóstolo Pedro, em sua
primeira epístola, exorta-nos dizendo: “segundo
é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o
vosso procedimento, porque escrito está: sede santos, porque eu sou santo”
(1 Pedro 1.15b-16).
Na vida prática de um cristão, a
santidade, cultivada de modo progressivo é tão importante, que o autor da
epístola aos Hebreus sentencia: “Segui a
paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”. (Hebreus
12.14). O apóstolo João, por sua vez, afirma que quem nutre, em seu coração, a
esperança viva de um dia estar com o Senhor, em sua refulgente glória, “a si mesmo se purifica, assim como ele é
puro” (I João 3.3b).
Amor, misericórdia e santidade,
eis, aqui, três atributos comunicáveis de Deus, que devem fazer parte da nossa
vida aqui na terra, até o dia em que, no céu, se manifestarão de modo pleno e
perene. Certamente, amados irmãos, dada a nossa inata pecaminosidade, nenhum de
nós “é suficiente para essas coisas”,
mas, pela mediação de Jesus Cristo e pelo munificente poder do Espírito Santo,
“em todas essas coisas somos mais do que
vencedores”. SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.
JOSÉ
MÁRIO DA SILVA
PRESBÍTERO
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