Liberalismo teológico: como a praga liberal começa

 
Sou Anglicano. Isso certamente surpreende muitas pessoas. Afinal de contas, como pode um teólogo reformado, e portanto, conservador, fazer parte de uma tradição cristã que costuma sair no Jornal das Dez por seu nada disfarçado flerte com a teologia liberal? A má fama do Anglicanismo é tanta que, muito recentemente, um casal de homossexuais escreveu ao nosso Bispo no Brasil para saber como faria para congregar conosco na Free Church of England.

Acontece que eu sou Anglicano, mas não sou liberal. E o leitor talvez fique surpreso ao descobrir que milhões de anglicanos são cristãos conservadores. Talvez se surpreenda ainda mais se eu disser que o maior esforço global contra o liberalismo teológico é fruto do trabalho de… Anglicanos! É verdade que nem todos são reformados como eu, mas são conservadores, mesmo discordando deste ou daquele ponto secundário, e as vezes até litúrgico. O problema mais grave nessa história é que os Liberais possuem muito poder econômico, político e midiático. Assim, pouco a pouco, eles vão ganhado espaço na sociedade, no Governo, na Mídia, e na Igreja –  e não apenas nas Igrejas que integram o Anglicanismo, mas também em outras denominações importantes como as presbiterianas, luteranas, metodistas, pentecostais e até dentro do Catolicismo Romano.

Um segundo problema é que não se vende jornal publicando noticias que mostram existir uma maioria cristã, dentro do Anglicanismo, lutando bravamente contra o trator liberal. Mas, se um algum bispo ou presbítero aloprado resolver fazer um casamento gay, certamente sairá em Rede Nacional – mesmo eles agindo contra as regras de órgãos importantes, como a Comunhão Anglicana. Isso explica as pessoas ficarem com a impressão de que Anglicano é tudo igual, e que o Liberalismo dominou tudo e todos. Felizmente isso não é verdade. Até mesmo aqui no Brasil, onde uma grande Igreja Anglicana como a IEAB, adepta do liberalismo, domina o noticiário, há cristãos anglicanos conservadores – ainda que, a alguns anos, a maior parte deles tenha sido excluída pelos liberais, formando hoje a Igreja Diocese Anglicana do Recife, que já foi mais conhecida como Diocese Anglicana do Recife, nos dias do saudoso Bispo Robson Cavalcante.

Mas, apesar dessa longa introdução, não vou falar hoje destes e outros heróis da resistência cristã dentro do Anglicanismo. O que desejo é fazer um alerta importantíssimo, válido tanto para meus companheiro anglicanos, quanto para qualquer outro cristão, servindo ao senhor em qualquer outra tradição eclesiástica. Esse alerta começa com uma questão: Como a praga do liberalismo começa?

Ouvi certa feita sobre o método que seria o adequado para cozinhar um sapo vivo. Não sei se procede, nem o que faria alguém desejar fazer tal coisa, mas vale pela moral da história. Segundo me contaram, para conseguir cozinhar um sapo vivo é necessário ir aquecendo a água aos poucos, para que o coitado vá se acostumando a temperatura crescente e não saia pulando da frigideira. Quando ele se der conta, se é que dará, será tarde demais. Essa história se aplica perfeitamente ao método sorrateiro pelo qual o Liberalismo, moral e teológico, se infiltra numa Denominação, ou mesmo em uma Igreja Local. Os liberais jamais chegam chutando a porta tentando impor sua agenda sem mais nem menos. Existe todo um plano que consiste em ir, lentamente, ganhando pequenos espaços, pequenas lutas, até que, por fim, esteja tudo contaminado.
O apóstolo S. Paulo alertava a Igreja de Corínto sobre este método sorrateiro que o Diabo usa para contaminar o Corpo: “Não é boa a vossa jactância! Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa? Alimpai-vos, pois, do fermento velho, para que sejais uma nova massa” (I Cor. 5:6,7a). Mas, nem sempre estamos dispostos a nos livrar do fermento; ou, simplesmente achamos que um pouco de veneno não nos fará mau. Como sapos cozidos lentamente, talvez não consigamos acordar a tempo. É assim que o liberalismo, e as heresias mais diversas, vai entrando na Igreja, de modo geral. Se você, como eu, acredita que o “mundo gospel” deturpou a essência do Evangelho, então deves saber que essa mentalidade mundana, carnal e materialista foi chegando aos poucos, seduzindo uns e outros, até que ninguém mais estranhasse o novo cenário. “Ninguém mais”, claro, é modo de dizer, pois Deus nunca deixar de ter os seus milhares que resistem as tentações de Baal.

No final deste ano de 2015, como acontece todos os anos, nossa Igreja, a Free Church of England, se reunirá em seu Sínodo Anual, que possivelmente terá, pela primeira vez, a presença de nosso Bispo Primaz, o Revdm. John Fenwick, da Inglaterra. Um evento muito apropriado para as novas ordenações de presbíteros e diáconos que nossa missão no Brasil tanto precisa. Uma ocasião na qual os candidatos precisam jurar fidelidade ao cristianismo bíblico, e assinar nossa Declaração de Princípios.

Alguns críticos costumam me dizer que tudo isso é um exagero, e que a Igreja não precisa olhar tão de perto para a fé das pessoas, ou de seus ministros ordenados. Será mesmo que não? Ou, posto de outra forma: saberia o leitor me dizer exatamente o que o seu pastor local acredita sobre Deus, o pecado, a santificação, as diretrizes bíblicas sobre o Matrimônio e sexualidade humana? Sabemos o que os professores ensinam em nossos Seminários e Escolas Dominicais? Acredito, de coração, que precisamos e temos o direito de saber!

É por isso que em nossa luta contra o liberalismo temos nos organizado mundialmente para buscar diretrizes claras, através das quais a Igreja possa ter certeza que sua fé está sendo guardada e ensinada com fidelidade, afinal, ela é “a Igreja do Deus vivo, a coluna e a firmeza da verdade” (I Tim. 3:5). Milhões de nós, reunidos em Global Anglican Future Conference (GAFCON), temos por dever aceitar e subscrever uma declaração que, dentre outras coisas, afirma receber como verdade de fé “a criação por Deus da humanidade como macho e fêmea, e o padrão imutável do casamento cristão entre homem e mulher como o lugar apropriado para a intimidade sexual e a base da família. Arrependemo-nos por nossas falhas em manter esse padrão, e conclamamos uma renovação do compromisso de fidelidade duradoura no casamento e de abstinência para os em celibato”.

Um exagero definir as coisas tão claramente, e exigir que as Igrejas e seus representantes subscrevam? Certamente não! Ceder, ainda que um pouco de cada vez, é como ver a barreira de uma represa com pequenos trincos e imaginar que se consertará por si só. É verdade o que dizem sobre a caminhada de 10 kilometros começar com apenas um passo – uma verdade que se aplica também ao método liberal de se infiltrar e atropelar o Cristianismo ortodoxo no Ocidente.

O Dr. David W. Virtue descreve precisamente o método usado pelos liberais. Primeiro, eles chegam dizendo que querem apenas conviver pacificamente, e que não é preciso concordar em tudo com todos. É como um pacto de amizade. Mas, depois de conquistarem esse pequeno espaço, eles se revelam como verdadeiramente são,  a exemplo de bispos progressistas como K. Jeffers Schori ( EUA), Fred Hiltz (Canadá), juntamente com Michael Ingham, ou mesmo o homossexual assumido Gene Robinson, que trabalham ativamente para que “todas as expressões ortodoxas sejam, primeiro, marginalizadas, para em seguida serem expulsas da Igreja, e finalmente destruídas”, explica Dr. Virtue. Em outras palavras, é uma agenda progressista, que vai cozinhando o sapo lentamente, para não assustá-lo, mas que não tem qualquer intenção de deixá-lo vivo.

Concordo, portanto, com a conclusão do autor, que é uma das mais importantes vozes do Anglicanismo conservador na atualidade, e que foi membro por quarenta anos da hoje mais liberal denominação anglicana (TEC). Sua análise final é que “não podemos permitir que o liberalismo sobreviva”. As pessoas imaginam que não existam anglicanos fieis, mas estão erradas. Acontece que esses irmãos estão perdendo seus salários, suas catedrais e paróquias e seminários, e não poucas vezes ainda são arrastados diante de Tribunais seculares. O prejuízo dos cristãos evangélicos, tanto dentro do Anglicanismo, quanto dentro de outras igrejas tradicionais, como a Presbiteriana dos EUA, já ultrapassou em muito a casa dos bilhões de dólares! Um plano esta em curso para destruir o cristianismo ortodoxo, bem como os evangélicais, e nós precisamos estar atentos a isso. O próximo passo na América do Norte, que é um tipo de laboratório para o resto do mundo, parece ser tornar a fé histórica da Igreja uma prática ilegal. Se tiver oportunidade ainda escreverei sobre essa ameaça aqui.

Um exemplo do ódio liberal contra os evangélicos e conservadores foi quanto, não muito tempo atrás, os progressistas de plantão decidiram boicotar um professor universitário conservador. Como Anglicano vou seguir dando exemplos dentro da minha própria tradição: o Bispo N.T. Wrigth, que tem vários livros publicados no Brasil, estava deixando seu cargo como Bispo de Durham, na Inglaterra, para assumir uma cadeira na School of Divinityna University of St. Andrews. Rapidamente os progressistas atacaram, tentando forçar a Universidade a rejeitar o novo professor, acusando-o de ser “homofóbico” – seja lá o que isso significa. Felizmente a instituição não cedeu, nem foi procurar um professor mais tolerante. Writgth assumiu seu novo posto apesar da raiva progressista. E se a Universidade tivesse cedido, indo procurar um professor mais “tolerante”? Teria sido mais um “pequeno” avanço em prol da agenda liberal, que a cada ataque exige uma fatia maior do bolo. Custe o que custar, é preciso resistir e não ceder nenhum passo.

É necessário fazer frente a isso, mesmo que nos coloquem no hall dos “reacionários” da fé. Mais importante que nossa popularidade é ser fiel ao Evangelho do Cristo. Como anglicano, me pergunto porque a Comunhão Anglicana sequer censurou William Temple, que em 1953 publicou um livro no qual afirmava que “não existe tal coisa como verdade revelada”, ou James Pike, que em 1960 declarava que a Doutrina da Trindade era “desatualizada, incompreensível e não-essencial”, ou ainda Ransey, que em 61 surpreenderia o mundo ao dizer que “o céu não é um lugar apenas para os cristãos… espero ver muitos ateus lá”. Será que ninguém viu? Ou os conservadores estavam apenas tentando ser tolerantes? Ora, qual é o limite quando as pessoas começam a questionar as doutrinas mais fundamentais da Fé Cristã, e nada é feito para impedi-las? Para ser justo, a Comunhão Anglicana não poderia punir literalmente um herege porque, ao contrário da Igreja de Roma, nós Anglicanos não possuímos uma sede ou um Papa, todavia, é necessário ter mecanismos que impeçam que as pessoas alterem os fundamentos da fé a seu bel-prazer. Sem tais mecanismos e coragem, os dias da Comunhão Anglicana podem estar contados, já que ela não passa de um enfeite sem qualquer utilidade prática na atual crise.

Precisamos compreender, sejamos Anglicanos ou não, que ceder não é uma opção real. Recentemente um grupo de irmãos insatisfeitos com os rumos da mais antiga e liberal denominação anglicana do Brasil resolveu desligar-se. Não querendo abrir uma nova denominação, procuraram filiar-se a nós, da Free Church of England (também conhecida aqui como Igreja Anglicana Reformada do Brasil), porque possuímos  Ordens válidas e plenamente aceitas pela Igreja da Inglaterra. Além disso, somos membros do GAFCON, a maior instituição anglicana do mundo, depois da própria Comunhão. Mas, em meio ao processo de admissão desses irmãos, o bispo comissionado pela FCE para o Brasil, o Reverendíssimo Josep Rossello, achou por bem verificar as convicções dos mesmos sobre temas importantes da fé histórica, como a autoridade das Escrituras. Infelizmente, constatou-se que, apesar de insatisfeitos com os abusos dos liberais, eles mesmos já estavam flertando com o liberalismo, soubessem disso ou não. Não foram aceitos na FCE, pois um pouco de fermento pode causar muito estrago. E não faltou quem nos taxasse de reacionários e fundamentalistas. Foi uma decisão dura, e triste, mas é preciso não ceder! Um único pastor, ou mesmo professor de seminário flertando com a heresia, querido leitor, pode significar toda uma geração perdida no futuro.

Talvez o leitor já tenha visto em sua própria denominação, ou Igreja local, aqueles que relativizam a autoridade das Escrituras, a exclusividade de Cristo, a moralidade judaico-cristã, ou qualquer outra doutrina fundamental do Evangelho. Cuidado! Como a praga do liberalismo começa? Um passo de cada vez… Que o leitor não se deixe enganar, o ódio dos progressistas contra o Cristianismo histórico não tem limites, e eles estão dispostos a tudo para destruí-lo, mesmo que precisem levar para o abismo todo o Ocidente. Hoje, mais do que nunca, o Senhor convoca soldados dispostos a pagar o preço de resistir. Quem atenderá ao seu chamado? Se não nós, quem?

Não é, entretanto, desejo deste artigo promover qualquer tipo de caça as bruxas, até porque não é necessário: são as bruxas que estão nos caçando! Recai sobre nós o dever de seguir o conselho de Judas de “batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos” (Judas 3b).

Rev. Marcelo Lemos. Presbítero da Free Church of England (IARB), autor do livro “Quem São os Anglicanos?”, e editor do blog Olhar Anglicano.

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