João Calvino e a Universidade
Rev. Augustus Nicodemus Lopes
Breve Histórico de Calvino
João Calvino cursou filosofia e humanidades no Collège de Montaigu, ligado à universidade daquela cidade.
Sentiu-se atraído pelo humanismo, ou seja, a apreciação pela antiga cultura greco-romana. Dedicou-se ao estudo do latim, do grego, da teologia e dos autores clássicos, além de fazer cursos na área do direito. Através de parentes, amigos e professores, recebeu influências do novo movimento protestante, convertendo-se à fé evangélica por volta de 1533. Dedicou-se, então, ao estudo sistemático e aprofundado da Bíblia, publicando em 1536 a primeira edição de sua obra mais famosa, As Institutas da Religião Cristã. No mesmo ano, passou a residir em Genebra, na Suíça, cidade que recentemente havia abraçado o protestantismo. Após breve permanência ali, viveu por três anos em Estrasburgo (1538-1541), no Sul da Ale-manha, junto ao reformador Martin Bucer (1491-1551). Nesse período, pastoreou uma igreja constituída basicamente de franceses exilados e lecionou na academia de Johannes Sturm (1507-1589).
Em 1541, regressou a Genebra e ali passou o restante de sua vida. Em 1559, tornou-se cidadão de Genebra, publicou a edição definitiva das Institutas e fundou a Academia de Ge-nebra, embrião da futura universidade. Faleceu em 1564, aos 55 anos. Alister McGrath demonstrou, em sua biografia sobre Calvino, como o mito de "o grande ditador de Genebra" está enraizado em conceitos populares difundidos especialmente por afirmações sem fatos históricos que as apoiassem, mas que acabaram por moldar a visão de Calvino que hoje prevalece em muitos meios acadêmicos.
No aspecto religioso, Calvino é considerado o pai da tradição protestante reformada, que engloba presbiterianos, congregacionais, parte dos batistas e parte do anglicanismo. Seus seguidores ficaram conhecidos, em geral, como reformados.
Um quadro mais próximo aos registros históricos mostra que Calvino era um pastor atencioso, que visitou pacientes terminais de doenças contagiosas no hospital que ele mesmo havia estabelecido, embora fosse advertido dos perigos de contato. Além disso, tomou diversas atitudes que mudaram a vida social da cidade. Foi ele quem instou o conse-lho municipal de Genebra a afiançar empréstimos a juros baixos para os pobres. Genebra foi o primeiro lugar na Europa a ter leis especiais que proibiam: jogar detritos e lixo nas ruas; fazer fogo ou usar fogão num cômodo sem chaminé; ter uma casa com sacadas ou escadas sem que as mesmas tivessem grades de proteção; alugar uma casa sem o conhecimento da polícia; sendo comerciante, cobrar além do preço permitido ou fraudar no peso e estocar mercadorias para fazê-la faltar no merca¬do e, assim, encarecê-la (e isso se estendia aos produtores).
Assim como Lutero e outros reformadores, Calvino defendeu a educação universal para todos os habitantes da cidade.
Calvino e a Educação
Em 1536, Calvino apresentou um plano ao conselho municipal de Genebra que incluía uma escola para todas as crianças, na qual as crianças pobres teriam ensino gratuito. Era a primeira escola primária obrigatória da Europa. Em uma delas as meninas eram incluídas junto com os meninos.
Calvino tinha um alvo muito claro quanto à educação. Ele desejava que os alunos das escolas de Genebra fossem futuros cidadãos da cidade, bem preparados "na linguagem e nas humanidades", além de terem formação cristã e bíblica. O currículo que ele ajudou a elaborar tinha ênfase nas artes e nas ciências, além da ênfase nas Escrituras. Conforme nos diz Moore, "o principal propósito da universidade [de Genebra] era eminentemente prático: preparar os jovens para o ministério ou para o serviço no governo."
Essa preocupação de Calvino com a educação decorria de sua visão cristã a respeito do mundo. Entre os pontos de sua teologia que o impulsionavam à missão como educador, havia a concepção do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, conforme análise de Héber Carlos de Campos:
Em sua teologia sobre a imagem de Deus no homem, Calvino viu o ser humano como um ser que aprende inerentemente. Deus depositou no ser humano "a semente da religião " e o deixou exposto à estrutura total do universo criado e à influência das Escrituras. Por causa dessas coisas, qualquer homem poderia aprender, desde o mais simples camponês ao indivíduo mais instruído nas artes liberais.
FÉ HOJE
Outro ponto das convicções religiosas de Calvino era o entendimento de que todo conhecimento vem de Deus, quer seja o conhecimento "sagrado", quer seja o "profano". Calvino tinha uma visão ampla da cultura, entendendo que Deus é Senhor de todas as coisas e que, por isso, toda verdade é verdade de Deus. Essa perspectiva amparava-se no conceito da "Graça Comum" ou "Graça Geral" de Deus sobre todos os homens. Ele disse:
Visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para a sua glória, tudo que pode ser corretamente usado dessa forma?
Calvino defendia que Deus havia agraciado todas as pessoas com inteligência, perspicácia, capacidade de entender e transmitir, indistintamente de sua fé e crença. Assim, desprezar a mente secular era desprezar os dons que Deus havia distribuído no mundo, até mesmo aos incrédulos, mediante a graça comum.
A Academia de Genebra
Não devemos estranhar que, à luz das convicções teológicas de Calvino, ele tivesse seu coração voltado para a educação da população de Genebra e da Europa em geral. Desde 1541 encontramos registros da sua preocupação diária em como dar a Genebra uma universidade. Ele desejava criar uma grande universidade, mas os recursos da República eram pequenos para isso. Assim, ele se limitou à criação da Academia de Genebra (1559), que o historiador Charles Bourgeaud (1861-1941), antigo professor da Universidade de Genebra, considerou como "a primeira fortaleza da liberdade nos tempos modernos".
No currículo, incluía-se o ensino da leitura e da escrita e cursos mais avançados de retórica, música e lógica. Conforme Campos nos diz em sua pesquisa, os alunos passavam do alfabeto à leitura do francês fluente, gramática latina e composição em latim, literatura grega, leitura de porções do Novo Testamento grego, juntamente com noções de retórica e dialética, com base nos textos clássicos. Não é sem razão que, diante de sua capacidade no latim, se dizia que os meninos de Genebra falavam como os doutores da Sorbonne.
O currículo da Academia enfocava não somente as artes e a teologia, como igualmente as ciências. Na mente do Reformador, não havia conflito entre fé e ciência na universidade. Ao contrário da visão educacional escolástica medieval, Calvino considerava que o estudo da ciência física tinha como propósito descobrir a natureza e seu funcionamento, pois Deus se revelava à humanidade por meio das coisas criadas, da natureza. Estudando o mundo, o ser humano acabaria por conhecer mais a Deus. A Academia veio a se tornar modelo para outras escolas da Europa.
A Reforma e a Educação
Os cristãos reformados, a exemplo de Calvino, dedicaram-se igualmente a promover a educação, as artes e as ciências. Nunca viram a fé cristã como inimiga do avanço do conhecimento científico e do saber humano.
Alister McGrath cita a pesquisa feita por Alphonse de Candolle sobre a participação de membros estrangeiros na Academie des Sciences Parisiense, durante o período de 1666 a 1883, os primeiros séculos posteriores à Reforma protestante. Segundo McGrath, Candolle verificou:
Os protestantes excediam em muito a quantidade de católicos. Tomando como base a população [de Paris], Candolle estimou que 60% dos membros [da Academie] deveriam ter sido católicos, e 40%, protestantes; as quantias reais acabaram por ser 18,2% e 81,8%, respectivamente. Embora os calvinistas fossem consideravelmente uma minoria, na parte Sul dos Países Baixos, durante o século XVI, a vasta maioria dos cientistas naturais dessa região foi proveniente desse grupo.
A mesma pesquisa mostrou que, na composição primitiva da Royal Society de Londres, a maioria dos seus membros era composta de reformados. Tanto as ciências físicas quanto as biológicas foram influenciadas fortemente pelos calvinistas durante os séculos XVI e XVII. Todos esses pesquisadores e cientistas, por sua vez, haviam sido influenciados pela Reforma Protestante, especialmente pela obra de João Calvino.
Na área da educação, especificamente, destaca-se a obra de João Amós Comênio, um morávio que recebeu influência reformada em sua educação. Em 1611, ingressou na Universidade de Herborn, em Nassau, um dos centros de difusão da fé calvinista, sendo aluno do teólogo calvinista Johann H. Alsted (1588-1638). Em 1613, foi admitido na Universidade de Heidelberg (Alemanha), onde estudou teologia. Aqui também havia forte influência calvinista. Comênio ficou conhecido por sua obra Didática Magna, publicada há 300 anos. Produziu, além disso, uma obra vastíssima ligada especialmente à educação (mais de 140 tratados). Sua obra Didática Magna é considerada o primeiro tratado sistemático de pedagogia, de didática e de sociologia escolar. Nessa obra, Comênio defende que a educação, para ser completa, deve contemplar três áreas: instrução, virtude e piedade. Sua visão educacional, influenciada pela Reforma, atinge a dimensão intelectual, moral e espiritual do ser humano.
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