A doutrina do arrependimento é
uma das mais importantes do cristianismo e ocupa um espaço absolutamente
central na história da redenção. Por toda a Escritura Sagrada, de modo mais
ostensivamente explícita ou subentendida, a doutrina do arrependimento avulta,
revelando-se, assim, a sua indiscutível significação teológica.
No Antigo Testamento, por
exemplo, o ministério dos profetas, traduzido pela recepção, compreensão e
proclamação da Palavra de Deus ao povo, frequentemente, tinha na pregação da
mensagem do arrependimento uma das suas marcas principais. E tal ocorria por
uma razão muito simples: havia no seio do povo de Deus uma impressionante
propensão para o afastamento do Senhor, para o trilhamento de caminhos
pecaminosos, inteiramente desaprovados pelo Senhor.
Diante das contumazes rebeliões
dos israelitas, sempre pródigos em enveredar pelas sendas da idolatria e da
corrupção do culto a Jeová, Deus, longânima e benevolentemente, enviava a sua
Palavra pela instrumentalidade dos profetas, exortava o povo, denunciava a sua
impiedade, confrontava os seus maus caminhos, trazia sobre eles o seu justo
juízo e, desse modo, mostrava a sua inviolável santidade, deixando bem claro
que jamais compactuaria com o mal, tratando o culpado como se inocente fosse.
Contudo, o intento primordial do Senhor não era simplesmente punir o seu povo,
mas sim quebrantá-lo e levá-lo a uma mudança de atitude; enfim, ao
arrependimento e, ato contínuo, ao abandono de uma vida de consciente
iniqüidade.
Nesse particular, um dos mais
emblemáticos exemplos do modo gracioso como Deus trata o arrependimento de um
pecador contrito é-nos conferido pela história de Manassés, catalogado, no
livro santo de Deus, como um dos mais perversos reis que Israel já teve em sua
turbulenta história. O relato bíblico acerca do reinado de Manassés é primoroso
na cartografia que empreende a respeito da impressionante impiedade que lhe
marcou as ações no comando político-administrativo de Israel.
O governo de Manassés foi longo,
51 anos, todos eles caracterizados por maldade, profanação, idolatria,
feitiçaria, crimes abomináveis como o de queimar os seus filhos e oferecê-los
como sacrifício aos deuses vãos e inexistentes, fabricados por sua imaginação
depravada. Tais barbaridades não se constituíram em lances fortuitos na vida de
Manassés, antes de impuseram como um paradigma comportamental predileto, dado
que ele “prosseguiu em fazer o que era
mau perante o Senhor, para o provocar à ira” (2 Crônicas 33.6b).
Mais tarde, transformado em
prisioneiro de guerra e troféu do exército assírio, sendo conduzido em praça
pública em sinal de humilhação suprema, “Ele,
angustiado, suplicou deveras ao Senhor, seu Deus, e muito se humilhou perante o
Deus de seus pais; fez-lhe oração, e Deus se tornou favorável para com ele,
atendeu-lhe a súplica e o fez voltar para Jerusalém, ao seu reino; então,
reconheceu Manassés que o Senhor era Deus” (2 Crônicas 33.12,13).
No Novo Testamento, não é menor e
menos relevante o valor da doutrina do arrependimento. Pelo contrário, ela é,
por assim dizer, o coração da mensagem do evangelho da graça de Deus. O
arrependimento foi o tema central da pregação desencadeada por João Batista,
cuja aparição no deserto da Judéia deu-se da seguinte forma: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino
dos céus” (Mateus 3.2). O arrependimento também configurou-se como o cerne
da pregação de Jesus Cristo, a própria Palavra encarnada de Deus: “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a
dizer: arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (Mateus 4.17).
Mais adiante, depois de
ressuscitado dentre os mortos, Jesus Cristo “instrui os seus discípulos que estavam no caminho de Emaús,
abrindo-lhes o entendimento para que compreendessem as Escrituras Sagradas e
lhes ordena que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados
a todas as nações, começando de Jerusalém “ (Lucas 24.45,47). Depois da
descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes, que conferiu à igreja a
capacitação necessária para a proclamação do evangelho, o apóstolo Pedro prega
o seu primeiro e poderoso sermão, ao fim do qual houve “um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas” (Atos 2.41b).
O ponto central da mensagem
anunciada por Pedro não foi outro senão o que se nuclearizou por um veemente
apelo à consciência dos que o ouviram: “Arrependei-vos,
e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos
vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (Atos 2.38b). Apelo
aqui, bem entendido, encarado como a mensagem em toda a sua integralidade,
dirigida, de igual modo, ao ser total do homem, seu pensar/sentir/agir; e não o
apelo visto como uma cerimônia emocional acrescentada à pregação e que seria,
supostamente, portadora de uma virtude adicional capaz de comover o pecador e,
desse modo, levá-lo a Cristo.
Nessa acepção semântica
particular e inteiramente estranha à boa tradição do cristianismo
bíblico-histórico, o apelo é tributário das crenças e práticas pelagianas de um
teólogo americano chamado Charles Finney, cujos ensinamentos trouxeram muitos
males para a igreja cristã. No ministério do apóstolo Paulo, a doutrina do
arrependimento também foi presença fulcral. Uma grande demonstração dessa
realidade verifica-se no paradigmático sermão que ele proferiu no Areópago de
Atenas. Ali, no panteão da intelectualidade grega, cercado pelos mais laureados
corifeus do pensamento helênico, Paulo refuta, como amor, sabedoria e firmeza,
um a um, todos os falsos conceitos filosóficos que aquelas pessoas nutriam a
respeito de Deus e do sentido último e definitivo da vida.
Contestando estóicos e epicureus,
as principais correntes filosóficas ali presentes, Paulo proclama uma mensagem
profundamente rica do ponto de vista teológico. Nela, Deus emerge como o criador
supremo de todas as coisas, que a tudo concedeu vida pelo poder glorioso da sua
Palavra. Prosseguindo em sua argumentação, o apóstolo aponta, de igual modo,
para o Deus que preserva todas as coisas que criou, sustentando-as pelo seu
poder imenso.
Diferentemente do que apregoavam
os sistemas filosóficos gregos combatidos por Paulo, defensores da ideia de
divindades distantes e absolutamente desinteressadas pelos seres humanos, as
quais não passavam de projeções da vã e idolátrica imaginação humana, o Deus
único, vivo e verdadeiro das Escrituras Sagradas é um Deus presente, envolvido
com a sua criação de modo extremamente radical, tanto é assim que, na pessoa
bendita do seu Filho Jesus Cristo, Deus se encarnou, fez-se homem, andou e
viveu nesta terra santamente, morreu, substitutivamente, na cruz do calvário, a
fim de salvar, eficazmente, pecadores que lhe foram, antes da fundação do
mundo, entregues pelo Pai. Em suma: o Deus apresentado por Paulo é um Deus
amoroso, gracioso, benevolente, misericordioso, bom; é um Deus redentor. É,
também, um Deus santo, justo, plenamente puro, que, ao ter a sua lei quebrada
pelo pecador, exige, como salvaguarda do seu caráter inquebrantavelmente santo,
a morte do pecador, dado que “a alma que
pecar, essa morrerá” (Ezequiel 18.20).
Mas, o Deus que não transige com
o pecado, nem tem o culpado na conta do inocente, é o mesmo que, graciosamente,
“não levou em conta os tempos da
ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda a parte, se
arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com
justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos,
ressuscitando-o dentre os mortos” (Atos 17.30b,31). Vemos, pois, que,
centralíssima em toda a Escritura Sagrada, a doutrina do arrependimento é a
porta indesviável de entrada do pecador no reino de Deus.
Um ponto, de pronto, se impõe:
quem precisa de arrependimento? A pergunta parece óbvia, mas a sua existência
tem uma nítida razão de ser. No senso comum, sobretudo por causa do alto grau
de justiça própria cultivado pelos homens, há sempre quem ache que
arrependimento não é uma necessidade de todos, mas sim de algumas pessoas
supostamente mais pecadoras, praticantes, digamos, de males mais escabrosos e
moralmente mais passíveis de censura coletiva.
A Escritura Sagrada, no entanto,
caminha em direção inteiramente contrária. Visto que todos pecaram, todos
precisam de arrependimento, sem exceção e sem distinção. Uma passagem bíblica
emblemática a esse respeito é a que o evangelista Lucas registra no capítulo 13
do seu evangelho. Nele, há uma história que faz referência a alguns “galileus cujo sangue Pilatos misturara com
os sacrifícios que os mesmos realizavam” (Lucas 13.1b). Depois, o texto
alude a dezoito pessoas “sobre as quais
desabou a torre de Siloé”, matando-os imediatamente.
Diante de tais acontecimentos,
não faltou quem julgasse que tais infortúnios se abateram sobre essas pessoas
pelo fato delas serem mais pecadoras do que as outras. Ouçamos o que diz Jesus
Cristo acerca do assunto: “não eram, eu
vo-lo afirmo; mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis”
(Lucas 13.4b,5). Um outro questionamento importante é o que legisla sobre a
seguinte matéria: de que devem os homens se arrepender? Não somente do que
fazem, mas também do que são. Não somente dos atos desarmonizados com a vontade
santa de Deus, mas do estado espiritual em que se encontram.
O homem é pecador na sua
essência, e disso ele deve se arrepender-se, de viver constantemente errando o
alvo estabelecido por Deus e, em direção contrária, prosseguir andando de modo
contrário ao elevado padrão da lei do Senhor. Para quem se julga bom e
merecedor do céu por seus próprios méritos, nada mais recomendável do que um
estágio, ainda que breve, na escola dos dez mandamentos, diante dos quais fica
evidenciada, sem rasuras, a completa falência do homem diante de tão sublime
modelo de santidade.
Os evangelhos falam acerca de um
jovem riquíssimo que, pretextando interesse pelas coisas espirituais, perguntou
a Jesus o que deveria fazer para herdar a vida eterna. Jesus ordenou-lhe que
observasse os mandamentos de Deus e os praticasse. Ele disse que tudo isso já
fazia, desde a sua infância. Jesus, então, dá o golpe final no ensoberbecido e
autoconfiante ego do rico e perdido jovem: “uma coisa ainda te falta: vende o que tu tens, dá aos pobres, vem e
segue-me; e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Mas, ouvindo ele
estas coisas, ficou muito triste, porque era riquíssimo” (Lucas 18.22,23).
Diferentemente do que presumem
que Jesus estaria aqui ensinando a possibilidade de haver salvação pela
observância da lei de Deus, o que vemos, de fato, é o Filho de Deus
demonstrando, cabalmente, que pela guarda da lei ninguém pode ser salvo. O
jovem rico, por exemplo, gabava-se de ser um exímio guardião de toda a lei de
Deus, mas, na verdade, começou a transgredi-la já a partir do primeiro
mandamento, na medida em que o seu deus era o dinheiro, a quem ele amava “de todo o coração, de toda a sua alma, de
todas as suas forças e de todo o seu entendimento” (Lucas 10.27b). Em suma:
o jovem rico era simplesmente um idólatra, um triste e perdido pecador, mais do
que necessitado de arrependimento e carente da perdoadora graça de Deus. Um
último e nodal ponto acerca da doutrina do arrependimento é o seguinte: como o
homem pode se arrepender?
Chegamos, pois, ao coração de um
dos grandes paradoxos do cristianismo. Embora a Escritura Sagrada, tanto do
Antigo quanto do Novo Testamento, deixe muito claro que o arrependimento é uma
ação de inteira responsabilidade do homem, não é menos meridiana a sinalização
que ela dá de que o arrependimento genuíno, e não um mal-estar passageiro da
consciência, só acontece num coração que foi poderosamente tocado pelo Santo
Espírito de Deus; o qual, valendo-se da instrumentalidade da pregação do
evangelho, convence o homem do pecado,
da justiça e do juízo (João 16.8b), revela a sua completa miséria moral e
espiritual e, por fim, o conduz a Jesus Cristo, o perfeito e eficaz Salvador,
que na cruz, ao bradar: “está consumado”
(João 19.30b), salvou, efetivamente, todos aqueles por quem morreu; que lhe
foram entregues pelo Pai; e nos quais o Espírito Santo aplica as virtudes dessa
grande e salvífica obra.
Nesse particular, vale
transcrever as seguintes palavras das Escrituras Sagradas: “E ao servo do Senhor não convém contender,
mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar, sofredor; instruindo com
mansidão os que resistem a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para
conhecerem a verdade. E tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do
diabo, em que à vontade dele estão presos” (2 Timóteo 2.24,26).
Claro que o arrependimento, na
passagem em foco, direciona-se, fundamentalmente, aos falsos mestres que se
distanciaram da Palavra de Deus e se tornaram, ato contínuo, pregoeiros do
engodo, cuja linguagem “corrói como
gangrena” (2 Timóteo 2.17b), o que não anula o fato de que, em qualquer
circunstância, o arrependimento genuíno somente se efetiva pela ação
sobrenatural do Santo Espírito de Deus, que aquece os afetos, ilumina o coração
e alforria a vontade, impelindo-a a abraçar a Cristo pelos inquebrantáveis
laços da fé, gracioso dom de Deus.
A despeito de toda a importância
da doutrina do arrependimento para a vida do cristão, ela será inócua se se confinar
apenas ao campo do academicismo teórico; se não desembocar num viver contrito e
piedoso, que cultiva a plena consciência de que em nosso dia-a-dia, de variadas
formas, nós pecamos contra Deus e carecemos, desesperadamente, da sua
restauradora graça.
Concluímos essas considerações
sobre o arrependimento com os seguintes questionamentos a todos os que as
lerem: você já se arrependeu verdadeiramente dos seus pecados? Já foi
persuadido pelo Espírito de Deus de que sem Cristo está irremediavelmente perdido?
Já abandonou a vã presunção de ser possível ser acolhido por Deus amparado
pelas imprestáveis muletas das obras supostamente meritórias? Tais fatos já
fazem parte da sua vida ou, ao contrário, você continua longe de Deus e resistindo
ao seu gracioso chamado para a salvação? Pense nisso, lembrando-se sempre de
que somente as ovelhas de Cristo ouvem a sua poderosa e libertadora voz.
Arrependa-se dos seus pecados, dê ouvidos ao chamado de Salvador Jesus Cristo e
creia nele de todo o seu coração. SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.
JOSÉ
MÁRIO DA SILVA
PRESBÍTERO
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