A primeira pergunta do Breve
Catecismo, um dos mais importantes Símbolos de Fé das igrejas que professam uma
confessionalidade de base reformada, é a seguinte: “Qual o fim principal do homem? O fim principal do homem é glorificar a
Deus, e gozá-lo para sempre”.
Eis o propósito maior e
indesviável para o qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus: viver
de uma maneira permanentemente agradável ao Senhor, amando-o de todo o seu
coração, obedecendo de modo prazeroso todos os seus mandamentos, encontrando,
enfim, em seu Criador, a sua completa e suficiente fonte de alegria. Em suma: o
homem foi criado para adorar a Deus em todo o seu pensar, sentir e agir.
Assim sendo e procedendo, o
homem seria plenamente feliz, destituído de qualquer modalidade de carência.
Isso no plano vertical, num tipo de relacionamento amplamente desimpedido entre
e Criador e a criatura. Na outra ponta, no plano horizontal, matizado pelas
relações entre as pessoas, a perfeita comunhão entre Deus e o homem
desembocaria numa vida comunitária igualmente assentada nos pilares do amor
mútuo, da fraternidade recíproca, do carinho mais efetivo, da irmandade mais
íntima e indestrutível.
Contudo, esse jardim de delícias
foi um dia manchado pela nódoa terrível do pecado de Adão e de Eva, os quais,
depois de darem ouvidos à perversa e diabólica tentação protagonizada pelo
terrível adversário das nossas almas, quebraram a ordenança do Senhor, violaram
o seu santo pacto, decaíram da graça e, ato contínuo, tornaram-se corrompidos
em todas as dimensões constitutivas do seu ser. A esse estado de integral
falência moral e espiritual, as Escrituras Sagradas chamam de morte espiritual,
depravação radical, desconformidade explícita com a lei de Deus, expressão do
seu caráter e da sua perfeita santidade.
Desse modo, criado para
glorificar a Deus com todo o seu ser, desfrutá-lo para sempre, e adorá-lo em
espírito e em verdade, o homem, ao pecar, errou o alvo, e ficou destituído da
glória e da graça de Deus. Coroa da criação divina, o homem, como conseqüência
da cósmica rebelião engendrada contra Deus, foi destronado, destituído da
privilegiada condição de mordomo amoroso da terra, ficando, em seguida,
subjugado pelo império da abominável idolatria que, daí por diante, passou a
conferir régua e compasso ao seu desviante comportamento.
Na epístola endereçada aos
romanos, em seu capítulo introdutório, o apóstolo Paulo discorre sobre algumas
das etapas percorridas pelo homem em seu itinerário de gradativo afastamento de
Deus. O ponto seminal da argumentação paulina radica nas pressuposições
inerentes à revelação natural de Deus, esculpida na admirável e assombrosamente
diversificada ordem da criação. Por meio dela, e das impressões digitais de
Deus espalhadas em todas as suas vastas latitudes, os homens são todos
considerados indesculpáveis, dado que a criação revela os principais atributos
de Deus, o seu poder majestoso, o suficiente, enfim, para que os homens
reconhecessem o senhorio de Deus, a sua evidente divindade e, desse modo, o
adorassem, rendendo-lhe a glória somente a Ele devida.
Contudo, caminhou noutra direção
a resposta dada pelo homem à amorosa revelação de Deus consubstanciada na
criação. A corrupção começou na mente do homem, alojou-se no seu coração, infeccionou-lhe
vontade, e fez dele uma espécie de contumaz produtor de pecados, sendo uma das
suas expressões mais grosseiras a que frutificou no território de uma
sexualidade cultivada à revelia do projeto originalmente concebido por Deus; e
que tinha, e tem, no par dicotômico e complementar homem vs. mulher a sua
expressão mais eloqüente.
Temos procurado demonstrar, ao
longo de todo este texto, que, por deliberada e pecaminosa decisão, o homem
rejeitou o propósito original para o qual foi criado: “glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre”, isto é, desprezou o
privilégio de ser um adorador contumaz do seu benfeitor supremo e, em direção
contrária, preferiu fazer do pecado a sua cogitação existencial mais
acalentadamente perseguida. Que fez Deus, então, diante da ingratidão suprema
daquele que se constitui na obra-prima de suas mãos?
Graciosa, bondosa e
misericordiosamente, como expressão do pacto da graça urdido nos invisíveis
bastidores da eternidade pela Trindade, Deus Pai envia Deus Filho para morrer
na cruz do calvário e, desse modo, quitar o pesado débito contraído por seu
povo junto à sua lei. Deus Filho cumpre cabalmente a sua missão, retorna ao céu
de glória, de onde, juntamente com o seu Pai, envia o seu Espírito, que, de
modo sobrenatural, capacita a sua igreja para a tarefa gloriosa da
evangelização de todos os povos.
Em sua ação ministerial, o
Espírito Santo tanto concede poder à igreja, a fim de que ela possa realizar a
missão de proclamadora do evangelho, quanto opera eficazmente no coração do pecador,
conduzindo-o ao arrependimento e à fé salvadora na pessoa de Jesus Cristo.
Penso que já é possível estabelecermos os indisfarçáveis vínculos existentes
entre a evangelização e a adoração.
Na condição de irregenerados, os
homens estão privados de cumprir a sua mais nobre finalidade existencial: “glorificar a Deus, e glorificá-lo para
sempre”. Sendo assim, suas vidas não passam de mutilações ambulantes, “não tendo esperança e sem Deus no mundo”,
conforme o realismo lingüístico empregado por Paulo em sua epístola endereçada
à comunidade de Éfeso. Para terem o quadro das suas existências modificado, os
homens precisam ouvir o evangelho, e somente o farão se forem eficazmente
evangelizados. Assim, antes de mergulharmos no coração daquilo que efetivamente
pode ser chamado de evangelização, precisamos refletir sobre o que não é
evangelização.
Embora pressuponha diálogo,
respeito pelo outro, e afetividade no exercício interacional, evangelização não
é um mero compartilhamento fraterno de idéias religiosas mais ou menos
equivalentes às que são professadas por aqueles que vão nos ouvir, mas sim a
proclamação da única verdade capaz de reconciliar o homem com Deus: Jesus
Cristo, sua vida, morte e ressurreição. Evangelização não é o desfilar de
promessas infundadas e desonestas para o pecador; um inventário de coisas que
Deus nunca disse em sua Palavra que faria: conceder riqueza a todo o mundo,
saúde perfeita, ausência completa de sofrimento, dentre outras.
Evangelização não é um ativismo
agressivo voltado para o pragmático aumento do número de membros da minha
denominação, os quais serão depois, pomposamente, exibidos nas estatísticas do
triunfalismo e do orgulho. Evangelização também não é a multiplicação de
discursos subjetivistas, nuclearizados pelos famosos testemunhos do que Deus
fez por mim, na maioria das vezes, mirabolantes, sensacionalistas, e
inteiramente desprovidos da chancela da Palavra de Deus.
Evangelização, à luz das
Escrituras Sagradas, é a transmissão fiel de todo o conselho de Deus, isso
pressupõe, de acordo com o que pontua Mark Dever em seu excelente livro Deliberadamente Igreja, um anúncio claro
de quem Deus é e do que faz; quem é o homem, seu pecado e estado de perdição;
quem é Jesus Cristo, e a portentosa obra de redenção por Ele consumada na cruz
do calvário; e, por fim, um anúncio sobre as duas prementes e inegociáveis
exigências que o evangelho faz a todos os homens: que eles se arrependam dos
seus pecados, ponham toda a sua confiança na pessoa e na obra de Jesus Cristo,
e passem, em seguida, a viver por meio da sua Palavra, e do poder iluminador e
santificador do seu Santo Espírito.
Nenhuma atividade evangelizadora
que se pretenda forrada de biblicidade pode prescindir desses pressupostos que
recobrem a proclamação da salvação que há em Jesus Cristo. Quando pregamos o
evangelho, não estamos buscando pessoas para “aceitar a Jesus Cristo” (nomenclatura inencontrável nas Escrituras
Sagradas) de modo frívolo, sentimental, e absolutamente inconsistente, mas sim
procurando pecadores que sejam levados a perceber, por meio da pregação fiel do
evangelho, que uma vida consagrada ao pecado é uma forma antecipada de inferno,
dado que se efetiva longe de Deus, e completamente alienada do alvo supremo de
uma vida realmente bem-aventurada: “glorificar
a Deus, e gozá-lo para sempre”.
Embora a dinâmica objetiva do
evangelismo (metodologia de apresentação
do evangelho) possa ser móvel e sensível aos contextos concretos em que a
evangelização se agencia, a evangelização propriamente dita (o conteúdo da mensagem anunciada) não
pode sofrer nenhuma alteração no núcleo duro das suas formulações doutrinárias
essenciais, sob pena de sermos catalogados como pregadores infiéis.
Mark Dever, no livro a que
aludimos anteriormente, diz que “aquilo
com que ganhamos as pessoas é aquilo para que as ganhamos”. Se as ganhamos
com entretimento e frivolidade, então teremos crentes tão ruidosos quanto
descompromissados com o alto custo de se seguir a Cristo de modo realmente
bíblico; crentes para os quais o cristianismo é um eterno piquenique de final
de semana. Se as ganhamos com as facilidades próprias de uma ilusão terrível
chamada Teologia da Prosperidade,
então teremos crentes egoístas, e cheios de vontade, para os quais Deus não
passa de uma espécie de serviçal cósmico, sempre pronto a satisfazer os mais
caprichosos desejos humanos. Se as ganhamos com a apresentação pura e simples
do evangelho da cruz, loucura para os perdidos, mas poder de Deus para os que
nele encontram salvação, conforme assinala o apóstolo Paulo em sua epístola aos
Coríntios, então teremos crentes dispostos a seguir a Cristo
incondicionalmente; crentes que submeterão ao senhorio do Filho de Deus, e aos
inafastáveis pressupostos que balizam um discipulado sério e desejoso de
reproduzir em todas as esferas da vida as marcas indeléveis do caráter santo do
Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Ao chegarmos neste ponto das
nossas considerações, cremos terem ficado evidenciadas as indeslindáveis
relações existentes entre a evangelização e a adoração, duas das mais
relevantes missões a serem desempenhadas pelo povo de Deus em sua peregrinação
terrena. O alvo supremo da vida, reiteremos, “é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre”. Uma vida de devoção ao
pecado frustra esse alvo solene.
Deus é digno de louvor, glória,
honra e adoração. É dever imperioso da igreja trabalhar incessantemente para,
no poder do Espírito Santo, conquistar para Deus o maior número possível de
pessoas. É óbvio que a conversão de uma alma é prerrogativa indisputável de
Deus, milagre prodigioso somente passível de ser operado pela ação soberana do
seu Santo Espírito. Essa realidade, entretanto, não deve arrefecer em nós o
desejo imperioso de proclamarmos a todos os homens a mensagem gloriosa da
salvação que há no evangelho do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, antes
deve servir como fonte de estímulo permanente. E é exatamente a esse trabalho
glorioso que a Escritura Sagrada chama de evangelização, dever e privilégio de
todo aquele que um dia foi alvo da salvadora graça que há em Jesus Cristo. A
Escritura Sagrada afirma que “Deus amou
o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que
nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). Um amor assim
tão grande merece ser proclamado. Evangelizemos, pois, para a glória de Deus.
SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.
JOSÉ
MÁRIO DA SILVA
PRESBÍTERO
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